Uma das regiões mais ricas em biodiversidade do litoral maranhense, a Ilha do Caju, no município de Araioses, voltou a ser palco de disputa entre comunidades tradicionais, o poder público e interesses privados. A área, de cerca de 9 mil hectares, está no centro de um conflito que envolve denúncias de restrição de acesso a pescadores e catadores, a instalação de um resort de luxo e a criação de um projeto de “carbono azul” — uma proposta de compensação ambiental associada a créditos de carbono.
Contrato com a União e a transformação em “ilha privada”
De acordo com apuração do The Intercept Brasil, a União firmou, em 2022, um contrato de aforamento com a empresa Ilha do Caju LTDA, pertencente ao empresário sueco Jimmy Furland e à esposa Natália Furland. O casal é proprietário também do hotel Casana, no Ceará — um empreendimento de alto padrão com diárias que ultrapassam R$ 10 mil.
O contrato concede à empresa o direito de uso de 252 hectares — o equivalente a menos de 3% da área total da ilha — para fins de exploração econômica. Apesar disso, moradores denunciam que a empresa tem tratado a totalidade do território como propriedade privada, instalando placas que indicam “acesso restrito” e “propriedade particular”.
A Superintendência do Patrimônio da União (SPU) no Maranhão confirmou que o contrato não inclui praias, manguezais, igarapés nem apicuns — áreas que, pela legislação brasileira, são de uso comum do povo e, portanto, de livre acesso.
Relatos de restrição e intimidação
Pescadores e catadores que vivem nas comunidades tradicionais da Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba afirmam estar sendo impedidos de acessar locais tradicionalmente usados para pesca e coleta. As denúncias incluem a presença de seguranças armados que estariam ameaçando moradores que tentam entrar nos mangues ou atravessar áreas da ilha.
“Ali é onde tem mais caranguejo e peixe. Agora a gente não pode mais entrar”, relatou o pescador Leandro dos Santos, vice-presidente da associação AmarDelta, que representa cerca de 2 mil famílias.
A Defensoria Pública da União (DPU) acompanha o caso. O defensor público federal Yuri Costa declarou que qualquer tipo de restrição imposta às comunidades tradicionais nessas áreas é ilegal. Ele citou o Código Florestal e a Lei do Gerenciamento Costeiro (Lei nº 7.661/1988), que asseguram o livre acesso a ambientes naturais de uso comum. Costa também alertou que o uso de seguranças para impedir a entrada de moradores pode caracterizar crime de constrangimento ilegal.
O projeto de carbono azul e a falta de consulta às comunidades
A empresa Ilha do Caju LTDA associou o futuro resort ao projeto Blue Carbon (Carbono Azul), em parceria com a multinacional Ambipar, sediada em São Paulo. A proposta prevê conservar cerca de 8,5 mil hectares da ilha para geração de créditos de carbono.
Entretanto, representantes de comunidades locais afirmam que não houve consulta prévia, livre e informada, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo a DPU, apenas o Estado tem prerrogativa para conduzir esse tipo de consulta — e não empresas privadas.
Moradores relataram ao Intercept que representantes da Ambipar tentaram realizar uma reunião informal para apresentar o projeto e questionaram se o encontro poderia “valer como consulta prévia”. A comunidade negou, e após o episódio, as restrições e ameaças teriam aumentado.
Licenciamento ambiental e pendências técnicas
Apesar de a Ilha do Caju estar situada dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), a empresa afirma estar dispensada de licenciamento ambiental, com base na Portaria nº 123/2015 da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema-MA), que isenta hotéis com até 50 leitos.
A própria Sema-MA, no entanto, confirmou que o pedido de dispensa ainda está em análise e que foram identificadas pendências técnicas, entre elas:
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falta de anuência da SPU e do ICMBio; 
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ausência de projeto de esgotamento sanitário; 
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necessidade de detalhamento das intervenções previstas. 
Até o momento, nenhum licenciamento ou dispensa foi concedido.
Mesmo assim, a empresa já obteve alvará e certidão de uso do solo emitidos pela Prefeitura de Araioses, que não respondeu a pedidos de esclarecimento sobre o processo.
Histórico de domínio privado e exclusão
Embora a Ilha do Caju seja de domínio da União, o controle privado sobre parte do território remonta à década de 1950, quando o primeiro contrato de aforamento foi concedido ao empresário inglês James Frederick Clark. Desde então, o território passou por gerações de proprietários estrangeiros até chegar aos atuais donos, em 2022.
Segundo o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), restrições ao uso tradicional da ilha já ocorrem há décadas, sob o argumento de preservação ambiental. “Tudo tem carbono. Não pode pegar caranguejo, nem mexer no manguezal. Reduzem a natureza ao carbono e excluem quem sempre viveu dela”, afirma Luciano Galeno, integrante do CPP no Piauí.
Ambipar e o histórico de infrações ambientais
A Ambipar, parceira no projeto Carbono Azul, é uma das maiores empresas brasileiras no setor ambiental, com contratos públicos e privados milionários — inclusive com órgãos federais e o Supremo Tribunal Federal (STF) — para serviços de compensação de emissões de carbono.
Entretanto, registros do Ibama apontam que a Ambipar acumula mais de R$ 22 milhões em multas ambientais aplicadas em 2024 por irregularidades em outros projetos. As penalidades permanecem ativas no sistema do órgão federal.
Silêncio e ausência de fiscalização
Até agora, órgãos federais como Ibama, ICMBio, SPU e o Ministério Público Federal afirmaram que não foram oficialmente comunicados sobre o empreendimento ou sobre o projeto de carbono na Ilha do Caju.
A empresa Ilha do Caju LTDA limitou-se a declarar, em nota, que “as demandas da comunidade local estão sendo cuidadosamente consideradas”. Já a Ambipar afirmou atuar apenas “no desenvolvimento técnico do projeto, que ainda está em fase de estudos”, e negou qualquer envolvimento com seguranças armados ou restrições de acesso.
O que falta esclarecer
Apesar das denúncias e das apurações jornalísticas, ainda há questões fundamentais sem resposta:
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O conteúdo integral do contrato de aforamento entre a União e a Ilha do Caju LTDA ainda não é público. 
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Não há comprovação documental sobre a atuação de seguranças armados contratados pela empresa. 
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O processo de dispensa de licenciamento ambiental ainda não foi concluído pela Sema-MA. 
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A Prefeitura de Araioses não apresentou os documentos que justificaram a emissão do alvará e da certidão de uso do solo. 
Enquanto isso, famílias tradicionais seguem alegando que perderam o direito de acesso às áreas onde sempre viveram e trabalharam — num conflito que revela o choque entre dois modelos de ocupação: o da preservação com exclusão social e o da sobrevivência de comunidades que dependem da natureza para viver.
 
                    